Através de uma Lente mais Abrangente: Olhar para os Sintomas Não-Motores da DH
Alterações de sono antecedem problemas motores na DH
Escrito por Melissa Christianson 28 de Janeiro de 2016 Editado por Dr Jeff Carroll Traduzido por Filipa Júlio Publicado originalmente a 25 de Janeiro de 2016
As representações comuns da DH que enfatizam apenas os sintomas de movimento transmitem uma imagem incompleta da verdadeira doença. A DH provoca sintomas motores e não-motores que, em conjunto, afectam todo o corpo. Agora, os cientistas estão a utilizar uma lente mais abrangente para explorar todos os sintomas da DH e determinar como é que os sintomas poderão estar relacionados nesta doença.
Menos Zoom
Embora os programas de televisão e os filmes muitas vezes retratem a Doença de Huntington (DH) como uma simples doença motora, qualquer pessoa da comunidade Huntington sabe que esta imagem é uma enorme simplificação. Compreender a DH requer fazer menos zoom e ver a doença através de uma lente muito mais abrangente. Na verdade, a DH é uma doença sistémica que afecta múltiplas partes do corpo e diferentes aspectos da vida e os seus sintomas não-motores podem ser tão devastadores como os seus mais famosos congéneres motores.
A nossa crescente compreensão da DH como uma doença sistémica levanta novas questões. Quais são os primeiros sinais e sintomas de DH? Como é que diferentes sintomas estão relacionados? Será que os sintomas iniciais de DH afectam sintomas mais tardios?
Neste texto, iremos falar sobre novas investigações que estão a começar a responder a estas questões.
Sintomas vistos de perto
Estas novas investigações centram-se em sintomas da DH que desregulam duas áreas de saúde importantes: o sono e o peso corporal.
Comecemos pelo sono. Podemos perceber como é crucial o sono para nós, humanos, pela frequência com que o fazemos: em média, as pessoas passam mais tempo a dormir do que a soma total do tempo que passam a trabalhar, a ver televisão, a cozinhar e a limpar.
Contudo, as pessoas com DH apresentam alterações de sono muito cedo no curso da doença, que afectam tanto a quantidade, como a qualidade do seu sono. Tal como debatemos anteriormente (http://en.hdbuzz.net/115), as pessoas com DH acordam mais vezes e dormem menos profundamente do que as pessoas que não têm a doença. Não sabemos exactamente porque é que estas alterações de sono acontecem, mas um desequilíbrio nos níveis de uma hormona denominada melatonina poderá estar envolvido neste processo (ler mais sobre melatonina na DH aqui).
Esta privação de sono é importante porque, mesmo em pessoas saudáveis que não estão a ter um tempo de sono suficiente, isto está associado a toda uma série de problemas de saúde física e mental. Ataques cardíacos, aumento de peso, problemas cognitivos - o risco de se terem estes e muitos outros problemas de saúde aumenta quando o nosso sono está perturbado.
As pessoas com DH também experienciam perda de peso e baixo peso corporal durante o curso da doença. Os cientistas estão ainda a investigar a causa destes sintomas, mas já sabemos que não se limita ao facto das pessoas com DH não comerem o suficiente. Em vez disso, estes sintomas podem ser consequência das alterações no equilíbrio e/ou metabolismo energético. Tal como no sono, estes sintomas predispõem as pessoas com DH a problemas de saúde adicionais.
Com base nestas associações, alguns cientistas perguntaram-se se o sono e os problemas metabólicos poderiam exacerbar ou mesmo provocar outros sintomas de DH. Para esta hipótese ser verdadeira, estes problemas teriam que surgir muito precocemente na doença, antes do aparecimento de outros sintomas. No entanto, não sabemos se é este o caso (ou não), porque ainda ninguém assinalou quando é que (e se) os problemas de sono e de metabolismo surgem verdadeiramente na DH.
Enquadrando a Questão
Para responder a esta pergunta, uma equipa de cientistas da Universidade de Cambridge, orientada pelo Dr Roger Barker, desenhou um projecto de investigação para analisar o sono e o metabolismo na DH.
No seu estudo, a equipa de Barker reuniu três grupos de participantes: pessoas sem DH, pessoas com DH pré-sintomática (que ainda não têm sintomas motores) e pessoas com DH inicial (que têm poucos sintomas motores). Como os participantes estavam todos em estadios de saúde e de doença diferentes, permitiram aos cientistas ter uma maneira fácil de observar como é que os sintomas se apresentam à medida que a DH progride.
Os cientistas estudaram estes participantes pormenorizadamente, no laboratório e na “vida real”, através de questionários, monitorização do movimento e das ondas cerebrais, análises sanguíneas e medidas de consumo energético. Ao serem tão meticulosos, ficaram mais confiantes de que tudo aquilo que observavam reflectia o que realmente acontece na doença.
O Desenvolvimento de uma Imagem
Esta investigação revelou uma imagem interessante do sono e do metabolismo na DH.
Em relação ao sono, as alterações começaram durante a fase pré-sintomática da doença e eram evidentes muito antes do início dos sintomas motores. De forma semelhante ao que acontece nos estadios mais avançados da doença, estas alterações perturbam, sobretudo, a continuidade do sono: as pessoas com DH pré-sintomática acordam mais vezes, passam mais tempo acordadas durante a noite e dormem menos profundamente do que as pessoas sem DH. Estes problemas eram progressivos e agravavam-se durante a DH inicial.
Por outro lado, alterações metabólicas semelhantes não se verificaram antes do início dos sintomas motores. De facto, os cientistas não observaram quaisquer diferenças metabólicas convincentes entre os voluntários saudáveis e as pessoas com DH pré-sintomática ou com DH em estadio inicial. Esta descoberta foi surpreendente, tendo em conta a perda de peso progressiva/o baixo peso corporal associados à DH, mas já foi confirmada num segundo estudo, completamente independente deste, orientado pelo Dr Thomas Warner da “University College London”.
Aumentando a Resolução
Em conjunto, estes resultados dão-nos uma imagem com grande resolução dos sintomas não-motores da DH.
Em primeiro lugar, mostram-nos que as alterações de sono estão entre os primeiros sintomas de DH. As alterações de sono começam antes dos sintomas motores, ao mesmo tempo que começam a surgir défices precoces em termos de raciocínio, memória e outras competências cognitivas (falaremos mais acerca disto).
Em segundo lugar, destacam uma pequena região do cérebro denominada hipotálamo. O hipotálamo tem apenas o tamanho de uma amêndoa mas tem um papel importante na regulação dos nossos estados de sono e de vigília. Se as alterações nesta pequena região do nosso cérebro são responsáveis pelos problemas de sono na DH, então estariam entre as alterações cerebrais que ocorrem mais precocemente na doença. Compreender estas alterações precoces poderá ser uma boa base para compreender as alterações cerebrais mais abrangentes que ocorrem nos estadios avançados de DH.
Em terceiro lugar, como as alterações de sono são fáceis de medir, parecem apontar para um potencial novo biomarcador de início e progressão da DH. Os biomarcadores são testes que medem ou predizem a progressão de doenças como a DH e são importantes porque nos permitem descrever objectivamente a doença. Um biomarcador que se centrasse num determinado aspecto do sono e que pudesse ser monitorizado de forma não invasiva ao longo do tempo, seria um instrumento valioso em ensaios clínicos e poderia eventualmente ajudar a predizer quando é que uma determinada pessoa irá desenvolver sintomas motores.
Finalmente, o facto deste estudo não ter encontrado défices metabólicos óbvios reforça a importância de testar as nossas ideias em relação ao que está a acontecer na DH - porque às vezes estamos errados. A explicação de que o peso corporal reduzido estava associado a alterações no metabolismo era uma ideia atraente, mas estes novos dados não a apoiam. Descobrir isto agora é muito bom, porque, assim, podemos avançar em busca de uma explicação alternativa e melhor para os sintomas associados ao peso corporal na DH.
Um Momento de Especulação
Uma das descobertas mais intrigantes desta investigação é a de que as alterações de sono surgem ao mesmo tempo que os défices precoces em termos de raciocínio, memória e outras competências cognitivas na DH pré-sintomática.
Este dado é intrigante porque sabemos que um sono insuficiente causa o caos no cérebro. Por exemplo, uma privação de sono moderada, causada por apenas 17 horas de vigília, afecta tanto o desempenho como um nível de álcool no sangue de 0.05%; além disso, diversos desastres históricos (por exemplo, o derramamento de petróleo da Exxon Valdez em 1989, no Alasca; o desastre com a nave espacial Challenger; o acidente nuclear de Chernobyl) foram em parte atribuídos a erros cognitivos humanos causados pela privação de sono. Assim, é razoável especular que alterações de sono precoces poderiam contribuir directamente para as alterações cognitivas nos estadios iniciais de DH.
Embora esta associação entre problemas cognitivos e privação de sono na DH seja uma ideia interessante, temos que ter cuidado em assumi-la como verdadeira. Para perceber porquê, pensemos nesta analogia. Imagine que está a estudar o crime na cidade de Nova Iorque e descobre que há uma associação entre delitos comuns e venda de gelados: sempre que há um aumento na venda de gelados, os delitos comuns aumentam; sempre que a venda de gelados desce, os delitos comuns diminuem.
Dada a relação clara entre estes dois eventos, será que diria que a venda de gelados causa crimes? Provavelmente não. Em vez disso, chegaria à conclusão muito mais razoável de que algum outro factor afecta ambos (por exemplo, a temperatura - durante o Verão, o aumento da temperatura poderá levar ao aumento da venda de gelados e a mais crime; durante o Inverno, está demasiado frio para ambas as coisas).
Utilizamos exactamente o mesmo raciocínio quando falamos da relação existente entre sono e alterações cognitivas na DH. Apesar destes sintomas surgirem ao mesmo tempo e avançarem paralelamente, não temos ainda informação suficiente para saber se um dos sintomas causa o outro ou se ambos são o resultado de algum outro factor da doença. Analisar cada uma destas possibilidades é uma questão importante que implicará mais investigação.
A Imagem Completa
Consideramos que esta é uma investigação sólida que nos mostra que as alterações de sono (mas não as alterações metabólicas) antecedem os problemas motores visíveis na DH, e estamos ansiosos por ver este trabalho aplicado ao desenvolvimento de biomarcadores e à compreensão das alterações cerebrais precoces na DH. Além disso, estamos intrigados com a possibilidade da existência de uma ligação mecanicista entre sono e cognição e esperamos que haja trabalhos futuros nesse sentido.
Globalmente, este estudo é também uma boa lembrança sobre a complexidade da DH. Alargar a nossa lente para compreender esta complexidade e identificar não só quando é que os sintomas surgem, mas também o modo como interagem, é crucial para nos focarmos melhor na doença e em tratamentos eficazes. Por fim, enquanto esperamos por tratamentos eficientes para a DH, temos vários bons medicamentos para ajudar com a questão do sono, sobre os quais os doentes de Huntington devem falar com o seu médico!