Jeff CarrollEscrito por Dr Jeff Carroll Editado por Dr Tamara Maiuri Traduzido por Filipa Júlio

Num anúncio que provavelmente ficará para a história como uma das maiores descobertas na doença de Huntington desde a descoberta do gene da doença em 1993, as companhias farmacêuticas “Ionis” e “Roche” anunciaram que o primeiro ensaio clínico com humanos de um fármaco para a redução dos níveis de huntingtina, o IONIS-HTTRx, demonstrou reduzir os níveis de huntingtina mutada no sistema nervoso e ser seguro e bem tolerado pelos doentes.

O que é que significa reduzir os níveis de huntingtina?

A terapia para a doença de Huntington que nos entusiasma mais denomina-se redução dos níveis de huntingtina. Esta abordagem pode também ser designada como silenciamento de genes, mas redução dos níveis da huntingtina é mais preciso, como iremos explicar.

A "Ionis pharmaceuticals" licenciou o IONIS-HTTRx ao seu parceiro Roche após sucesso deste Estudo de fase 1/2a
A “Ionis pharmaceuticals” licenciou o IONIS-HTTRx ao seu parceiro Roche após sucesso deste Estudo de fase 1/2a

Toda a gente tem duas cópias do gene da DH - um que herda da sua mãe, o outro herdado do pai. Nas pessoas que irão desenvolver doença de Huntington, uma dessas cópias do gene da DH está alterada, ou mutada de uma forma muito específica.

Mesmo junto do início do gene da DH está uma sequência repetitiva que se lê, no código utilizado pelos cientistas para descrever o ADN, C-A-G. As pessoas que não irão desenvolver a doença de Huntington têm cerca de 20 repetições desta sequência, enquanto as pessoas que irão desenvolver a DH têm essa sequência repetida mais vezes, na maioria dos casos cerca de 40 vezes ou mais.

As nossas células utilizam os genes como receitas para construir proteínas - pequenas máquinas moleculares que fazem coisas úteis às células. Quando uma célula precisa de fazer maior quantidade de uma determinada proteína, fazem-se cópias das instruções num químico que está muito ligado ao ADN e que se chama ARN. Os cientistas chamam ARN mensageiro a esta cópia de trabalho de um gene, já que transporta a informação de cada gene desde o ADN até às máquinas celulares que produzem as proteínas.

Isto significa que há mais do que um sítio na célula onde conseguimos encontrar a informação acerca da mutação da DH - a repetição anormalmente longa que encontramos no ADN da pessoa é também copiada ao mensageiro ARN. Finalmente, as células utilizam esta mensagem ARN como instruções para construir a proteína - a proteína huntingtina.

A maior parte da investigação na DH sugere que é a proteína huntingtina, não o seu gene ou mensageiro, que causa a disfunção e morte de neurónios nas pessoas com DH. Mas o que sabemos ao certo é que cada pessoa com DH tem uma cópia mutada do gene da DH, que actua como modelo para a proteína tóxica. Isto faz com que o gene mutado da DH seja o inimigo número 1 de todos os que estão a trabalhar no desenvolvimento de novas terapias para a doença de Huntington.

Os rápidos avanços na ciência que se verificaram nas últimas décadas, permitiram que os cientistas tenham agora uma grande caixa de ferramentas para conseguirem desligar selectivamente determinados genes. Algumas destas técnicas, tal como os oligonucleótidos antisenso, existem há décadas. Novas técnicas, tais como ferramentas de edição do genoma como o CRISPR/Cas9 só foram descobertas e desenvolvidas nos últimos anos.

Embora as características de cada técnica sejam diferentes, no mundo da doença de Huntington todas elas têm um excitante potencial de aplicação - conseguir reduzir a quantidade de proteína huntingtina. Em vários ensaios com animais onde se empregaram uma série destas ferramentas de silenciamento, quando os investigadores conseguem desligar o gene da huntingtina mutante, os modelos animais de DH melhoram os seus sintomas ou nem sequer ficam doentes.

Isto é ciência espectacular, mas ninguém está realmente interessado em curar a doença de Huntington num ratinho, numa mosca da fruta ou numa minhoca. Queremos curar a DH na espécie que é mais importante para nós - os humanos com DH.

Lembrete: qual é a história deste fármaco e deste ensaio?

De todas as técnicas de redução dos níveis de huntingtina existentes, a abordagem mais desenvolvida designa-se por oligonucleótidos antisenso ou ASOs. São pedaços de ADN curtos, feitos à medida e quimicamente modificados que conseguem entrar livremente nas células. Uma vez dentro das células, conseguem localizar e ajudam a destruir um ARN mensageiro específico - neste caso, aquele que está a dar as instruções às células para criarem a proteína huntingtina.

A “Ionis Pharmaceuticals”, em Carlsbad-Califórnia, tem desenvolvido ASOs para várias doenças ao longo das últimas décadas. Há alguns anos, aperceberam-se de que a DH seria uma doença perfeitamente ajustada à sua tecnologia, já que sabemos que, em animais, se reduzirmos os níveis da proteína huntingtina no cérebro, melhoramos os seus sintomas de DH.

O ano passado, a “Ionis” teve um enorme sucesso com um ASO para outra doença neurológica chamada atrofia muscular espinhal (SMA). Os ensaios clínicos testaram se a introdução de um ASO no líquido cefalorraquidiano conseguia melhorar os sintomas dos bébés que nasceram com esta terrível doença fatal. A mesma tecnologia de base, mas sendo o alvo um gene diferente.

As crianças do ensaio que a “Ionis” desenvolveu na SMA responderam tão bem que as organizações reguladoras pediram-lhes para terminar o ensaio mais cedo, para que todas as crianças envolvidas no estudo, incluindo aquelas que estavam a receber placebo, pudessem receber o fármaco. Basicamente, se a doença tivesse feito o seu percurso normal, as crianças ficariam progressivamente mais fracas e morreriam. Mas a maior parte das crianças tratadas com o fármaco estavam a ficar mais fortes e a viver durante muito mais tempo.

«No estudo de fase 1/2a, observaram-se reduções dependentes da dose na huntingtina mutadada nos doentes tratados com o IONIS-HTTRx »

O fármaco para a SMA da “Ionis” foi posteriormente aprovado nos EUA, na UE e em muitos outros países e está agora a ser administrado às crianças com SMA de todo o mundo.

Então e em relação à DH?

A “Ionis” tem estado a trabalhar nos oligonucleótidos antisenso (ASOs) para a DH desde o início de 2000, primeiro com células simples e depois com várias espécies de animais. Os efeitos que estavam a observar eram promissores e o teste em humanos começou a tornar-se uma possibilidade real. A esperança aumentou em 2013, quando o gigante farmacêutico “Roche” anunciou uma parceria com a “Ionis” para desenvolverem um fármaco ASO para a DH, a que chamaram IONIS-HTT Rx. Isto deu grandes recursos e experiência à Roche para enfrentar o problema da doença de Huntington.

Em Julho de 2015, começou o ensaio mais excitante até à data na doença de Huntington - um ensaio em que um ASO desenhado para reduzir a produção da proteína huntingtina era realmente administrado a pessoas com DH. O ensaio foi planeado para testar a segurança do fármaco e para saber se o fármaco estava ou não a fazer aquilo para que fora desenhado - reduzir a produção da proteína huntingtina. Nós ficámos muito entusiasmados com o início deste ensaio e escrevemos sobre ele aqui.

Em qualquer esforço para desenvolver novos fármacos, o primeiro objectivo é o de assegurar que o fármaco não tem efeitos secundários tóxicos. A História dá-nos muitos exemplos de fármacos que pareciam ser uma boa ideia, mas que tiveram efeitos secundários inesperados quando foram administrados às pessoas.

Com isto em mente, a “Ionis” e a “Roche” desenharam um estudo cujo principal objectivo foi determinar se o fármaco era seguro quando era administrado a pessoas, sendo que esta tem que ser a primeira etapa no processo de desenvolvimento de um fármaco.

Este primeiro estudo envolveu 46 pessoas com sintomas iniciais de DH na Alemanha, Canadá e Reino Unido. O ensaio começou em Julho de 2015 e estava planeado terminar em Novembro de 2017. Como verão, o ensaio completo decorreu no tempo agendado, o que nem sempre acontece!

Antes de falarmos sobre os resultados, há alguns pormenores importantes que as pessoas têm que ter em consideração. Em primeiro lugar, os fármacos ASO não entram no cérebro se forem administrados sob a forma de um comprimido. Por isso, os fármacos ASO para as doenças neurológicas são administrados através de uma injecção na base da medula espinhal, utilizando uma técnica que se chama punção lombar. Parece um bocadinho assustador, mas é um procedimento bastante comum, que é feito milhares de vezes por dia em hospitais de todo o mundo.

Em segundo lugar, o estudo incluía um braço placebo. Isto significa que alguns dos participantes passaram por todos os procedimentos do estudo mas receberam injecções sem fármaco. Este é um componente absolutamente essencial dos ensaios clínicos - se não tivermos um grupo de pessoas sem o fármaco, como é que sabemos se as alterações que observamos se devem ao fármaco e não a outro factor qualquer?

Finalmente, a dose. Sempre que os investigadores dão pela primeira vez um fármaco às pessoas, começam com uma dose muito baixa. Num estudo como este, formalmente designado como ensaio de dose múltipla crescente, os primeiros participantes recebem um dose baixa e os participantes que são envolvidos mais tarde recebem doses mais elevadas do fármaco. Isto permite que o médico monitorize cuidadosamente as pessoas em cada nova dose, para que quaisquer efeitos negativos do tratamento sejam precocemente detectados.

O que é que aconteceu agora?

Na segunda-feira, 11 de Dezembro, a “Ionis” divulgou em comunicado de imprensa uma descrição dos principais resultados do primeiro estudo com o IONIS-HTTRx. O título era: “Ionis pharmaceuticals licencia IONIS-HTTRx ao seu parceiro Roche após SUCESSO do estudo de fase 1/2a em pacientes com doença de Huntington”. Também disseram: “Observaram-se reduções dependentes da dose na Proteína Huntingtina Mutada”.

Se está a pensar o quanto deverá ficar entusiasmado com esta notícia - os dois editores do HDBuzz concederam fazer uma dança da alegria quando viram este comunicado de imprensa. São mesmo grandes notícias!

Observaram-se reduções dependentes da dose na proteína huntingtina mutadada no líquido cefalorraquidiano dos doentes que receberam o fármaco
Observaram-se reduções dependentes da dose na proteína huntingtina mutadada no líquido cefalorraquidiano dos doentes que receberam o fármaco

Já vamos explicar porque é que isto é tão excitante, mas há algumas coisas a ter em mente.

Primeiro - segurança. A “Ionis” e a “Roche” monitorizaram muito cuidadosamente os participantes no ensaio para ver se encontravam algum sinal de que o fármaco não é seguro. No comunicado de imprensa, a “Ionis” reporta: “o perfil de segurança e tolerabilidade do IONIS-HTTRx observado no estudo de fase 1/2a apoia o seu desenvolvimento continuado. Isto significa que não foram observados problemas de segurança significativos nos participantes, pelo que o primeiro obstáculo a este fármaco para a DH foi ultrapassado e podemos passar para as próximas etapas.

Lembrem-se - este ensaio não foi desenhado para provar que o IONIS-HTTRx ajuda nos sintomas de DH ou na sua progressão. O principal objectivo deste estudo foi estabelecer se o fármaco é seguro. A primeira vez que se administra um fármaco no corpo de alguém, queremos expor o menor número de pessoas possível, no caso de existirem problemas de segurança inesperados.

Além disso, lembrem-se de que este estudo foi curto - cada doente recebeu apenas 4 meses de injecções. Este período de tempo é demasiado curto para analisarmos se há alterações na velocidade de progressão da DH. Mesmo que o IONIS-HTTRx se torne num fármaco milagroso, o seu impacto nos sintomas ao fim de apenas 4 meses de tratamento pode ser muito reduzido e não esperávamos conseguir detectá-lo num ensaio tão pequeno.

Por isso - e esta mensagem é mesmo importante - ainda não sabemos se o fármaco melhorou os sintomas de DH dos participantes.

Contudo, o ensaio conseguiu ir além das questões de segurança de uma forma importante. Sempre que os voluntários participantes no ensaio recebiam uma dose do fármaco, era colhida uma amostra do seu líquido cefalorraquidiano (que envolve o cérebro e a medula espinhal).

Estudos anteriores demonstraram que se consegue medir os níveis da proteína huntingtina no líquido cefalorraquidiano. Parece que, há medida que as células começam a adoecer no decurso da DH, algum do seu conteúdo é derramado para este fluído, que circula pelo cérebro.

Uma vez que o objectivo das terapias de redução dos níveis da huntingtina, como o IONIS-HTTRx, é o de reduzir a quantidade de proteína huntingtina nas células cerebrais vulneráveis, teoricamente este processo permite-nos perceber se o fármaco está a fazer o que era suposto fazer. Simplesmente medimos os níveis da proteína huntingtina no líquido cefalorraquidiano antes e depois do tratamento.

Consideramos que a notícia mais entusiasmante do comunicado de imprensa da "Ionis” é esta: “No estudo de fase 1/2a, observaram-se reduções dependentes da dose na huntingtina mutadada nos doentes tratados com o IONIS-HTTRx”. Frank Bennet, o Director de Ciência da “Ionis” chegou mesmo a afirmar que as reduções parecem “exceder substancialmente as nossas expectativas”.

Isto significa que os doentes tratados com o IONIS-HTTRx apresentaram reduções da proteína huntingtina no seu líquido cefalorraquidiano. Com base neste resultado, parece que o fármaco está a fazer o que é suposto fazer e que a redução dos níveis de huntingtina foi conseguida!

A afirmação reduções dependentes da dose significa que doses mais elevadas do fármaco estão associadas a níveis mais reduzidos de huntingtina no líquido cefalorraquidiano. Isto é mesmo uma prova de que o efeito observado é realmente devido ao fármaco e não a qualquer outro aspecto do tratamento.

E agora?

Isto é excelente e toda a gente da comunidade Huntington deve agradecer aos corajosos voluntários que participaram neste exigente ensaio clínico, assim como às suas famílias e prestadores de cuidados. Temos igualmente que agradecer à “Roche” e particularmente à “Ionis”, que acreditaram nesta abordagem e que trabalharam muitos anos para se chegar a este ponto.

«O importante agora é passar rapidamente para ensaios clínicos maiores para testar se o IONIS-HTTRx abranda a progressão da doença »

Mas ainda não acabámos. O que vem a seguir?

Em primeiro lugar, temos que desenvolver um ensaio clínico com um número suficiente de participantes e com um tempo de tratamento mais longo, para poder analisar o seu impacto no curso dos sintomas de DH. O sucesso deste primeiro ensaio permitirá realizar um estudo mais alargado com centenas de doentes de Huntington, o mais brevemente possível.

Os investigadores envolvidos neste estudo sabem o quão urgente é a necessidade do novo ensaio. No comunicado de imprensa, a investigadora principal, Professora Sarah Tabrizi, disse: “o importante agora é passar rapidamente para ensaios clínicos maiores para testar se o IONIS-HTTRx abranda a progressão da doença”. O apoio firme da “Roche”, hoje anunciado, é um excelente sinal de que um ensaio clínico dessa natureza pode ser esperado para breve. Mal sejam lançados novos detalhes, poderão ler sobre eles no HDBuzz.

Este é um grande dia para a comunidade Huntington e põe-nos no caminho para desenvolvimentos ainda mais entusiasmantes em 2018. Pela primeira vez na história, os doentes de Huntington estão a ser tratados com fármacos que se comprovou reduzirem a quantidade de proteína huntingtina nos seus cérebros. Até ser realizado o próximo ensaio, não vamos saber se isto reduz o impacto da DH. E embora saibamos que o fármaco é seguro a curto-prazo, vamos ter também de observar cuidadosamente para detectar quaisquer efeitos adversos que possam existir a longo-prazo. Mas deparamo-nos com este problema com renovado entusiasmo e esperança. É a melhor prenda antecipada de Natal que poderíamos ter desejado.

O co-fundador do HDBuzz, Ed Wild, é investigador do programa da Ionis HTTRx e membro da Comissão Científica da Ionis e da Roche. Por isso esta peça foi escrita por Jeff Carroll. Jeff colabora com a Ionis em estudos com ratinhos, mas não esteve envolvido neste ensaio. Tamara Maiuri não tem qualquer conflito de interesse a declarar. Para mais informações sobre a nossa política de divulgação, veja a nossa FAQ...