Cafeína, cannabis e cautela
A cafeína acelera a doença de Huntington? A cannabis atrasa-a? O HDBuzz olha para além dos títulos
Escrito por Professor Ed Wild 07 de Julho de 2011 Editado por Dr Jeff Carroll Traduzido por Filipa Júlio Publicado originalmente a 06 de Julho de 2011
Novidades recentes sugerem que a Cafeína poderá ser prejudicial para as pessoas com a mutação da doença de Huntington, enquanto outras sugerem que a Cannabis poderá ser útil. Segue-se uma análise sobre a ciência por detrás destas novidades e sobre o porquê de considerarmos que um terceiro “C” - Cautela - poderá funcionar como o melhor remédio quando tratamos de novas histórias sobre “avanços” na DH.
A cafeína faz com que os sintomas da doença de Huntington comecem mais cedo?
A sugestão de que a cafeína poderá acelerar o início clínico da doença de Huntington foi feita numa apresentação do Dr Pierre Krystkowiak, da “CHU Amiens”, em França, no “International Congress of Parkinson’s Disease and Movement Disorders”, em Toronto, Canadá.
A equipa de Krystkowiak estudou 80 doentes de Huntington franceses. Cada doente preencheu um questionário acerca da quantidade de bebidas com cafeína, como chá, café ou coca-cola, que consumiu nos dez anos anteriores.
Através dos resultados dos questionários, dividiram os doentes em duas categorias - consumo elevado e consumo reduzido de cafeína. Depois, analisaram a idade que os doentes tinham quando, pela primeira vez, lhes foram diagnosticados sintomas de doença de Huntington.
É difícil analisar o início dos sintomas desta forma. A DH é causada por um “gaguejo” repetido de 3 letras no código de DNA do gene huntingtin (C-A-G-C-A-G…). As pessoas têm números diferentes de repetições e, em média, mais repetições provocam um início mais precoce de sintomas. O facto de os doentes de Huntington terem diferentes extensões de repetições faz com que o estudo das variações do seu início de doença seja complicado.
Tendo esta noção em mente, a equipa de Krystkowiak descobriu que, em média, os doentes com um consumo elevado de cafeína tinham desenvolvido sintomas cerca de quatro anos mais cedo do que aqueles com um consumo reduzido.
Na sua apresentação, Krystkowiak explicou que a cafeína bloqueia moléculas do cérebro que estão envolvidas na transmissão de informação, designadas “receptores A2A”. Esses receptores são mais numerosos nas células cerebrais que morrem precocemente na doença de Huntington.
Assim, as pessoas que bebiam muita cafeína tiveram um início clínico mais precoce - e os receptores que a cafeína bloqueia são proeminentes em regiões cerebrais lesadas pela DH… Será que isto é um barril de pólvora (ou uma chávena fumegante)? Será que as pessoas em risco de DH devem parar imediatamente de beber cafeína?
Aguentem os cavalos…
Como todos aqueles que vivem com a doença de Huntington sabem, tomar decisões acerca de assuntos como dieta e estilo de vida nunca é muito linear. Vamos espreitar por baixo do véu deste estudo para perceber o que se passa.
Como o próprio Krystkowiak salienta, demonstrou-se anteriormente, em amostras muito maiores de doentes, que o consumo de cafeína está associado a um risco mais reduzido de doença de Alzheimer e de doença de Parkinson - mais ou menos o contrário do que foi sugerido no estudo sobre doença de Huntington.
Sabemos que as doenças de Huntington, Alzheimer e Parkinson têm muitas características em comum. Portanto, seria uma grande surpresa se algo que agrava uma doença funcionasse como protector nas outras duas doenças. Não é impossível, mas defender este facto implica apresentar provas muito robustas sobre ele.
Quão robustas são as conclusões deste estudo?
«Veja para além dos títulos, confirme os factos e não tome decisões acerca de estilos de vida baseando-se numa única fonte de informação »
Bem, a resposta mais simples é a de que não sabemos - porque o estudo ainda não foi publicado.
Pode parecer uma coisa estranha de se dizer sobre um estudo que gerou novos artigos e publicações por toda a internet - mas é a verdade.
Esta investigação foi “apresentada” em formato de poster aos cientistas numa conferência - mas ainda não foi publicada numa revista com arbitragem científica.
Porque é que isso interessa? A revisão científica é o processo pelo qual os cientistas mostram os seus dados a outros especialistas, que verificam os resultados e o tratamento estatístico e asseguram que as conclusões retiradas são suportadas pelos dados. Tudo o que é publicado numa revista científica com boa reputação tem que passar por um processo de arbitragem científica e a publicação tem que disponibilizar todos os dados relevantes aos leitores que os queiram analisar.
A apresentação de resultados numa conferência científica é, muitas vezes, o primeiro passo a caminho da publicação, e existem verificações nessa altura para assegurar que o que é apresentado é fiável. No entanto, essas verificações são muito menos rigorosas do que quando o trabalho é submetido a uma revista de circulação nacional ou internacional com arbitragem científica.
A investigação está errada?
Não estamos a dizer que a investigação está errada - foi realizada por cientistas reputados e não há razão para duvidar que os resultados obtidos foram os apresentados. Contudo, quando surgem nas notícias, as investigações exploratórias deste tipo têm um impacto muitas vezes desproporcionado.
Os jornalistas e os autores de blogues têm que “colorir” as suas histórias para que as pessoas as leiam. Torna-se mais fácil com títulos que chamam a atenção como “Café acelera a doença de Huntington”. O problema agrava-se quando os jornalistas têm que escrever um artigo baseados na quantidade limitada de informação contida num poster, em vez de terem acesso a um artigo completo arbitrado cientificamente.
Na dúvida, porque não desistir do café?
Com base nas evidências reunidas até aqui, consideramos que não existem provas suficientes de que o café é prejudicial - ou benéfico - para fazer uma recomendação num dos sentidos. Quando houverem conclusões robustas, nós avisamos. Entretanto, seguem-se algumas das razões porque não pensamos que este trabalho deva levar os elementos das famílias Huntington a desembaraçarem-se das chávenas de café.
Em primeiro lugar, o estudo foi realizado com um número reduzido de doentes. Isso faz com que os resultados sejam menos fiáveis do que os de estudos que envolvem números maiores.
Em segundo lugar, o questionário acerca dos consumos de cafeína era “retrospectivo” - perguntava acerca dos consumos de cafeína nos dez anos anteriores. Sabemos que a doença de Huntington afecta a concentração e a memória, pelo que as pessoas que desenvolveram a doença mais precocemente poderão não ter tido uma recordação tão fiável acerca da quantidade de cafeína que consumiram no passado. Isso poderá criar a falsa impressão de que aqueles com um início de doença mais precoce consumiram mais cafeína.
Finalmente, poderá de facto existir uma associação entre o café e o início da doença de Huntington - embora possa ser exactamente a contrária. Em vez do café acelerar o início da DH, as pessoas destinadas a desenvolver DH precocemente poderão ter uma maior apetência por café. É muito provável que isto possa acontecer, porque sabemos que os doentes de Huntington desenvolvem frequentemente um interesse exagerado por determinados hábitos e rotinas. A presença de uma associação não significa necessariamente que a cafeína acelera a doença.
E acerca da cannabis?
As novidades acerca da cannabis ser “neuro-protectora” (protectora das células cerebrais) na doença de Huntington chegam-nos de uma investigação conduzida pelo Dr Javier Fernandez-Ruiz e publicada no “Journal of Neuroscience Research”. É uma publicação com arbitragem científica, o que é uma boa referência. No entanto, as novas histórias que derivaram desta investigação extrapolaram os resultados publicados. É importante olhar para além dos títulos para perceber exactamente o que foi comprovado.
Os investigadores estudaram os efeitos de duas substâncias químicas encontradas na cannabis, o THC e o CBD. Estes químicos encontram-se também num fármaco chamado “Savitex”, utilizado na esclerose múltipla para tratamento da rigidez muscular.
Estas substâncias químicas não foram estudadas em doentes de Huntington humanos - a investigação foi feita em ratinhos. Os ratinhos usados não eram portadores da mutação genética que provoca a DH - eram ratinhos normais que foram submetidos a substâncias tóxicas que provocam lesões no cérebro. As lesões são semelhantes às que são identificadas nos cérebros com doença de Huntington, mas estes não eram exactamente “modelos animais de ratinhos Huntington”.
Os dois químicos foram testados previamente, de forma separada, em roedores e descobriu-se que os protegiam de alguns dos danos causados pelas subtâncias tóxicas. O novo estudo envolveu testá-los conjuntamente e tentar perceber de que modo actuavam. Como era esperado, o cocktail das duas substâncias preveniu alguns dos efeitos adversos causados pelos tóxicos, provavelmente combinando efeitos anti-oxidantes e anti-inflamatórios.
Assim, embora esta seja uma investigação interessante, não envolveu doentes humanos, nem animais portadores do gene Huntington mutado, nem cigarros, charros ou bolos de haxixe! Não nos dá evidências de que fumar cannabis é útil ou perigoso para as pessoas portadoras da mutação da doença de Huntington. Por enquanto, esta é outra questão a que a ciência não consegue dar ainda uma resposta clara.
Com cautela
Esperamos que este artigo não seja desanimador. Toda a gente - incluindo os escritores e editores do HDBuzz - se sente entusiasmada com títulos que envolvam prevenir os danos causados pela mutação Huntington. O entusiasmo científico é bom, porque a esperança é mais poderosa quando se baseia em factos concretos. O nosso conselho é que se deixem contagiar por esse entusiasmo, mas que procedam com cautela. Vejam para além dos títulos, confirmem os factos e, quando se tratar da escolha de estilos de vida, “tudo com moderação” continua a ser um bom conselho, pelo menos até que existam provas mais robustas. Finalmente, não tomem decisões acerca do estilo de vida baseando-se apenas numa fonte de informação, incluindo esta!