Escrito por Carly Desmond Editado por Professor Ed Wild Traduzido por Filipa Júlio

É dada uma segunda oportunidade ao tratamento da doença de Huntington com lítio, com métodos de dosagem novos e mais seguros a entrarem nos sistemas de produção de fármacos. Será que um tratamento de longo-prazo com um fármaco antigo é capaz de prevenir ou atrasar a neurodegeneração nos doentes de Huntington?

Uma breve história do lítio

O lítio é um metal macio, cor de prata. Sendo um dos elementos naturais da terra, pertence a um grupo restrito de cerca de 100 blocos de construção químicos que constituem tudo o que nos rodeia.

O lítio é um ingrediente-chave das pilhas recarregáveis. Mas será que consegue prevenir que as células fiquem "sobrecarregadas" de DH?
O lítio é um ingrediente-chave das pilhas recarregáveis. Mas será que consegue prevenir que as células fiquem “sobrecarregadas” de DH?

A primeira utilização médica documentada do lítio remonta aos finais de 1800; contudo, ainda estávamos a mais de 50 anos de distância da descoberta da sua aplicação terapêutica mais comum. A administração de pequenas doses deste metal provou ser eficaz para acalmar os altos (mania) e baixos (depressão) emocionais sofridos pelas pessoas com perturbação bipolar - na linha da antiga tradição grega de se tomarem banhos minerais ricos em lítio para acalmar a mania psiquiátrica. Até hoje, o lítio continua a ser um dos tratamentos disponíveis mais eficazes nas perturbações do humor graves.

Apesar do uso clínico do lítio ter sido aprovado na maioria dos países desde o início dos anos 60, o seu modo de funcionamento permanece um mistério. Só agora os cientistas começam a perceber como é que o lítio age no cérebro ao nível molecular. Como se verificou, alguns dos processos químicos e biológicos que se sabe que estão disfuncionais nas doenças neurodegenerativas como a doença de Huntington podem também ser alterados pelo lítio.

Porque é que o lítio pode ser útil?

À medida que a DH progride, a degeneração vai ocorrendo sobretudo em duas partes do cérebro denominadas estriado e cortex cerebral. O estriado está numa região profunda do cérebro, enquanto o cortex é a superfície enrugada. Entre outras coisas, o estriado e o cortex trabalham em conjunto para controlar o humor e o movimento.

Dentro do estriado, um tipo de células muito específico, denominado neurónios espinhosos médios, é particularmente susceptível à doença. Os neurónios espinhosos médios são activados quando um transmissor químico chamado glutamato atinge as moléculas receptoras da superfície da célula. Na DH, estes receptores desenvolvem uma sensibilidade crescente ao glutamato, fazendo com que os neurónios espinhosos médios entrem num estado de excesso de estimulação.

Este excesso de estimulação pode desencadear um processo chamado excitotoxicidade, em que os químicos dentro dos neurónios são inadequadamente libertados, causando uma avalanche de efeitos nocivos. Se os danos acumulados forem demasiado severos, o neurónio morrerá. A excitotoxicidade é uma das teorias de funcionamento mais bem estabelecidas para a neurodegeneração na DH.

Onde é que entra o lítio em tudo isto? Bem, descobriu-se que o tratamento com lítio bloqueia a excitotoxicidade em modelos animais. Melhor ainda, diversos estudos demonstraram agora que o lítio é capaz de proteger os neurónios da morte celular e, possivelmente, até é capaz de encorajar a sua regeneração.

Esta não é a primeira vez que os investigadores consideraram tratar os doentes de Huntington com lítio. Já tinham sido feitos estudos clínicos nos anos 70, com resultados negativos - o lítio não tinha ajudado. Contudo, em retrospectiva, os ensaios tinham um viés significativo: todos os doentes já estavam em fases avançadas da progressão da doença antes de receberem o seu primeiro tratamento.

A prevenção é melhor?

Hoje, a nossa compreensão acerca dos efeitos biológicos do lítio modificou-se. Estamos mais interessados no seu potencial valor como fármaco preventivo, em vez de fármaco para tratar sintomas existentes.

Nos últimos anos, vários estudos em modelos de ratinhos com DH investigaram os benefícios a longo-prazo do tratamento com lítio. Em vez de esperarem até que os ratinhos já estivessem doentes, era-lhes dado o fármaco desde uma idade precoce. Os resultados foram encorajadores. Estes estudos sugerem que o lítio tem a capacidade de atrasar a neurodegeneração e os sintomas associados em modelos animais.

A desvantagem do lítio

No entanto, o caminho para testar o tratamento a longo-prazo com lítio em humanos manteve um obstáculo significativo - nomeadamente, o seu potencial para efeitos secundários sérios.

Os peritos em fármacos dizem que o lítio tem uma “janela terapêutica” muito estreita. Isto significa que os doentes necessitam de constantes monitorizações e análises sanguíneas para assegurar que estão a receber a dose apropriada. É difícil manter o nível adequado de lítio no sangue, e lítio a mais pode causar sérias complicações. Os efeitos secundários vão de sintomas leves, como tremor, confusão e náusea, até défices neurológicos severos.

Outra grande desvantagem potencial é a de que o tratamento a longo-prazo com lítio, mesmo a um nível terapêutico, pode conduzir a graves questões de saúde, como função renal reduzida, obrigando à descontinuação do tratamento. Isto seria um enorme problema para os doentes de Huntington, que poderiam ter que tomar lítio décadas a fio.

O NP03 é uma forma de lítio reembalada quimicamente que é mais eficaz a passar através das "paredes" que protegem as nossas células
O NP03 é uma forma de lítio reembalada quimicamente que é mais eficaz a passar através das “paredes” que protegem as nossas células

Uma nova abordagem a um medicamento antigo

Para ultrapassar os obstáculos actuais, um novo fármaco de lítio (NP03) e um novo sistema de distribuição química têm vindo a ser desenvolvidos pela “Medesis Pharma”. O NP03 é uma combinação de citrato de lítio (um composto de lítio tradicional) e de um novo sistema de distribuição de substâncias designado Aonys®.

De que forma é o NP03 diferente do lítio “normal”? Bem, cada célula do corpo humano mantém-se unida por moléculas gordurosas chamadas lípidos. Se as células fossem casas, os lípidos seriam os tijolos das paredes. Em química, algumas moléculas são denominadas “hidrofílicas” (que significa amantes de água) ou “hidrofóbicas” (que odeiam água). Os lípidos são moléculas longas que gostam de água num dos seus extremos e receiam água no outro extremo. Assim, qualquer substância que queira entrar numa célula tem que ultrapassar duas barreiras, a hidrofóbica e a hidrofílica.

O NP03 facilita a transição de lítio porque o lítio está ligado a lípidos que conseguem misturar-se com a “parede” lipídica das células. Isto significa que há mais lítio a ser absorvido pelas células e que é necessária menor quantidade da substância para se alcançar o mesmo efeito. O NP03 poderá oferecer um melhor controlo em tratamentos de longo-prazo com doses reduzidas de lítio, reduzindo o seu potencial para produzir efeitos secundários.

O NP03 testado em ratinhos Huntington

Numa recente publicação do laboratório do Dr. Michael Hayden, do “Centre for Molecular Medicine and Therapeutics”, na Colômbia Britânica, Canadá, foram apresentados dados positivos para a aplicação a longo-prazo do tratamento com NP03 num modelo de ratinhos com doença de Huntington.

Os ratinhos usados neste estudo, designados YAC128, produzem uma versão humana do gene Huntington mutado, a par das duas cópias normais do ratinho. Por volta dos 3 meses de idade, os ratinhos desenvolveram sintomas motores semelhantes aos que são vistos nos doentes de Huntington e uma neurodegeneração visível ocorreu aos 9 meses.

Para testar se o NP03 tinha as mesmas propriedades neuroprotectoras que o lítio tradicional, os ratinhos foram tratados com a substância a partir dos 2 meses - antes dos primeiros sintomas aparecerem.

Os resultados foram muito encorajadores. Os ratinhos aos quais foi dado o NP03 tiveram uma melhoria significativa do controlo motor quando comparados com os ratinhos Huntington não tratados. O estriado e os seus neurónios espinhosos médios foram poupados à degeneração. Ainda mais interessante, apesar de um período de tratamento tão longo, não foram observados quaisquer efeitos secundários adversos do NP03.

Um dos aspectos mais devastadores da DH é o facto de ser uma doença genética, afectando geração após geração dentro das famílias. Mas no que diz respeito a medicamentos preventivos, este facto pode até ser uma grande vantagem. Existe aqui uma oportunidade única para identificar com anos de antecedência os indivíduos que irão desenvolver DH e para travar a doença antes do início dos sintomas.

Um novo começo para o lítio?

Apesar de tudo, devemos ser cautelosos na forma como os estudos conduzidos com modelos animais são interpretados. Não há garantias de que o benefício terapêutico do NP03 seja transportado para doentes de Huntington reais ou de que não existam efeitos secundários inesperados.

O objectivo de qualquer tratamento é o de que os benefícios pesem mais do que os riscos. Numa tentativa de influenciar a balança, o NP03 pega num fármaco antigo, já com utilização aprovada em humanos, e tenta, simplesmente, torná-lo mais seguro. Se tudo correr bem, não deverá demorar muito até que o tratamento prolongado com doses reduzidas de lítio esteja pronto a ser testado em pessoas com a mutação da DH.

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