Compreender as expansões ao nível de uma única célula
Os cientistas analisaram as expansões CAG em cérebros de pessoas com DH para ver que células são afectadas
Escrito por Dr Rachel Harding 27 de Março de 2024 Editado por Dr Sarah Hernandez e Dr Leora Fox Traduzido por Madalena Esteves Publicado originalmente a 12 de Março de 2024
Em dois estudos recentes, os investigadores analisaram a forma como diferentes partes do cérebro são afectadas pelas expansões CAG na doença de Huntington (DH) ao nível das células cerebrais individuais. Os cientistas analisaram cérebros post-mortem de pessoas com e sem DH para seguir as alterações moleculares em diferentes regiões do cérebro chamadas córtex e estriado. Estes estudos forneceram novos conhecimentos sobre o que contribui para a DH. Vamos a isso!
Áreas específicas do cérebro são susceptíveis de sofrer danos na DH
Há já muito tempo que sabemos que algumas áreas do cérebro são mais afectadas do que outras nas pessoas com DH. Tipos específicos de células cerebrais nestas partes vulneráveis do cérebro tendem a morrer mais rapidamente do que outras, num processo conhecido como degeneração.
No entanto, as razões subjacentes ao facto de algumas células serem mais afectadas do que outras não são muito claras. Muitos investigadores de todo o mundo têm tentado perceber isso, uma vez que pode esclarecer exatamente como é que a DH progride e dar-nos pistas sobre como a podemos tratar.
Em dois artigos recentes, provenientes do mesmo laboratório da Universidade Rockefeller, em Nova Iorque, os cientistas analisaram muito atentamente as alterações moleculares que ocorrem em diferentes tipos de células cerebrais na DH. Utilizando amostras cerebrais post-mortem generosamente doadas por pessoas com ou sem DH, a equipa separou cuidadosamente o tecido cerebral em células individuais.
Os dois estudos centraram-se em diferentes partes do cérebro; o primeiro concentrou-se numa região chamada córtex, e o segundo analisou as células que constituem o estriado e o cerebelo. Cada região do cérebro é composta por muitos tipos diferentes de células, pelo que os investigadores utilizaram marcadores especiais para classificar todas as células e determinar que células eram de que tipo. Conseguiram depois medir todo o tipo de alterações moleculares dos diferentes tipos de células utilizando tecnologias genéticas de ponta.
Ligar a expansão somática ao início dos sintomas
«Graças aos enormes avanços na tecnologia de sequenciação do ADN, podemos agora ver qual é o comprimento da repetição CAG em cada célula individual. »
Uma das alterações que os cientistas analisaram em cada célula foi o número de CAGs no gene da huntingtina. A DH é definida, a nível genético, como pessoas que têm mais de 36 letras de ADN C-A-G repetidas no seu gene da huntingtina, sendo que a maioria das pessoas com DH tem 40-50 CAGs, em comparação com as pessoas sem DH que têm cerca de 18 CAGs.
Há já algum tempo que sabemos que, em certos tipos de células, este número de CAGs não é estável e que se vai alterando ao longo da vida de uma pessoa, muitas vezes tornando-se muito mais longo. Este processo de aumento do número de CAGs em algumas células é conhecido como expansão somática. É importante notar que as células sanguíneas são um tipo de célula com números de repetições CAG estáveis em comparação com outros tipos de células. Assim, se fez um teste genético aos 18 anos, esse número será quase de certeza o mesmo se fizer um novo teste aos 50 anos.
A expansão somática tornou-se um tema quente na investigação da DH quando estudos de modificadores genéticos, características que alteram a idade de início dos sintomas, apontaram para os genes exactos que pensamos controlarem a expansão somática. Em conjunto, estes estudos sugerem que existe uma ligação entre o tamanho da repetição CAG durante a vida de uma pessoa com DH e a idade em que os sintomas da doença se manifestam.
Graças aos enormes avanços na tecnologia de sequenciação do ADN, podemos agora ver qual é o comprimento da repetição CAG em cada célula individual. De facto, foi exatamente isto que a equipa de Rockefeller fez. E o que é que eles descobriram?
Conclusões fixes do córtex
No primeiro estudo, publicado no início deste ano, os cientistas fizeram um zoom numa parte do cérebro chamada córtex - a parte exterior do cérebro com todas as rugas. Estudos que efectuaram exames cerebrais detalhados a pessoas com DH mostraram que esta parte do cérebro se torna mais fina. Descobriram também que as ligações entre células cerebrais se perdem nesta parte do cérebro ao longo do curso da doença e que as células tendem a morrer numa fase inicial. As alterações no córtex causam o declínio cognitivo e os sintomas psiquiátricos que muitas pessoas com DH apresentam.
Os cientistas descobriram que um tipo específico de células cerebrais, denominadas neurónios de projeção corticostriatal da camada 5a (ufa, que nome difícil!), se perde nas pessoas com DH. Estas células morrem precocemente durante a doença, tanto nos humanos como nos macacos. Embora estas células se encontrem no córtex enrugado, ligam-se ao centro do cérebro, ao estriado, a região que é mais vulnerável na DH.
Curiosamente, a equipa descobriu que o aumento do número de CAG ocorre em muitos tipos diferentes de células nervosas no córtex, incluindo as que permanecem relativamente saudáveis. Foram observados aumentos de CAG nas células cerebrais vulneráveis da camada 5a, mas também noutras células chamadas células Betz, que não são tão afectadas pela DH. Este facto levou os investigadores a concluir que o aumento do número de CAG não é suficiente, por si só, para fazer com que as células fiquem doentes.
«Quando a equipa analisou o número de CAG em tipos de células individuais, verificou que os MSNs tinham o maior aumento no seu número de CAG. »
Estudo surpreendente no estriado
No segundo estudo, os investigadores concentraram-se no estriado, uma região do cérebro situada no centro da cabeça e a parte do cérebro mais afetada pela DH. Um tipo de células cerebrais, chamadas neurónios espinhosos médios ou MSNs, encontram-se nesta parte do cérebro e são conhecidas pelos investigadores como sendo as mais vulneráveis à morte em pessoas com DH.
Quando a equipa analisou o número de CAG em tipos de células individuais desta parte do cérebro, verificou que os MSNs tinham o maior aumento no seu número de CAG. No entanto, outras células do estriado que não são tão afectadas na DH, como um tipo de célula nervosa chamada ChAT+, também tinham grandes alterações no seu número de CAG.
Os investigadores analisaram células do cérebro de uma pessoa com uma doença cerebral semelhante à DH chamada SCA3 (ataxia espinocerebelosa tipo 3), que é causada por um aumento de CAGs num gene chamado Ataxina3. As pessoas com SCA3 sofrem de perda de células cerebrais, mas esta não é específica do tipo de células MSN como acontece na DH.
Nesta doença, descobriram também que o número de CAG aumentava nas células MSN, mas não noutros tipos de células cerebrais, apesar de as células MSN nos cérebros destas pessoas não terem sido tão afectadas. Isto significa que os MSNs podem ser particularmente propensos a expandir as repetições CAG, independentemente do gene que tem as longas repetições CAG. No entanto, a repetição CAG em constante expansão pode não ser a razão direta da morte dessas células.
Então, o que é que tudo isto significa?
O que estes dois estudos apontam é para a ideia de que o aumento do número de CAG na DH pode ser apenas um dos passos necessários para que as células fiquem doentes. Por si só, a expansão somática pode ser insuficiente para causar a morte da célula, uma vez que os investigadores relatam expansões de CAG em células não vulneráveis à morte na DH, como as células Betz.
Ambos os estudos também analisaram outras características destas células. Fizeram um mergulho profundo nos genes que estão activados ou desactivados em cada célula dos cérebros de pessoas com e sem DH. O que descobriram é que a DH causa alterações globais nos tipos de genes que estão ligados ou desligados. Isto também já tinha sido demonstrado anteriormente por muitos outros grupos de investigadores. Os investigadores pensam que estas alterações podem causar toxicidade, afectando a saúde das células, e contribuindo eventualmente para a sua morte.
«O que estes dois estudos apontam é para a ideia de que o aumento do número de CAG na DH pode ser apenas um dos passos necessários para que as células fiquem doentes. »
Os investigadores pensam que os problemas de ligação podem também estar a contribuir para a morte das células. No córtex, encontraram alterações em células vulneráveis que mudam a forma como estas se podem ligar e comunicar com células noutras áreas do cérebro. Esta desconexão não só reduz a capacidade de uma área do cérebro comunicar com outra, como também enfraquece as próprias células ao longo do tempo.
Outros grupos de investigação estão ainda a testar a hipótese de que a expansão somática é a principal causa da DH. Cientistas diferentes estão a utilizar tecnologias diferentes para medir os números de CAG e as primeiras visualizações destes conjuntos de dados na recente reunião sobre terapêutica sugerem que isto pode conduzir a resultados diferentes. Esperamos ver muito mais trabalho neste domínio no futuro.
A ciência só é possível graças às famílias dos doentes
É realmente importante notar que quase todas as conclusões destes dois estudos muito importantes foram possíveis graças ao facto de os investigadores terem acesso a amostras cerebrais post-mortem extremamente preciosas. Em ambos os estudos, os cientistas compararam material cerebral de pessoas com ou sem DH, que já faleceram, e que generosamente doaram os seus cérebros à ciência para aprofundar a investigação. Trata-se de um ato altruísta espantoso que tem um impacto tremendo na investigação para compreender melhor a DH, com o objetivo final de um dia encontrar um medicamento para abrandar, parar ou reverter a doença.
Embora a dádiva de cérebros não seja algo que todas as pessoas se sintam confortáveis ou capazes de fazer, se estiver interessado em fazê-lo, vários organismos americanos como a HDSA, a HSC, o the Brain Donor Project e outras organizações de doentes têm informações e recursos sobre o que esta decisão envolve e os passos seguintes. Em Portugal, a doação é feita através o Banco Português de Cérebros.